Edição 108 – 2007
A Galinha dos Ovos Seguros

Divulgação / Fundacentro
Alto índice de óbitos em Espaços Confinados: mortes locais só são superadas pelos acidentes com queda em altura na construção civil
Ministério do Trabalho encara NR-33 como a maior ferramenta para redução de acidentes e mortes em Espaços Confinados no Brasil; entrada em vigor da Norma exige mudanças nos procedimentos de segurança das usinas

Antes de entrar em um silo, uma moega, ou qualquer tanque de armazenamento de grãos, alguns trabalhadores brasileiros garantem a própria segurança através de uma ação preventiva inusitada: empurram uma galinha viva, amarrada em cordas, ao interior do local – e a retiram após 15 minutos aproximadamente. A sobrevivência do animal usado como cobaia significa ausência de riscos na atmosfera do ambiente.

A cena descrita acima não foi pinçada da imaginação de nenhum romancista criativo. É o relato fiel de um procedimento comum em empreendimentos agrícolas no Rio Grande do Sul – com grandes possibilidades de extensão a outros Estados brasileiros.

Os equipamentos usados para estocagem agrícola são cenários de muitos acidentes ocorridos nos locais classificados como Espaços Confinados – armazenados em processo natural , os grãos liberam gás CO2 (dióxido de carbono) ou CH4 (Metano), substâncias letais para o ser humano se respiradas em grandes quantidades.

A alteração da atmosfera interna é uma das características do Espaço Confinado, local que possui meios limitados de entrada e saída, com ventilação insuficiente para remover contaminantes, ou onde possa existir a deficiência ou enriquecimento de oxigênio.

A definição de Espaço Confinado também abrange os ambientes não usualmente destinados, projetados e construídos para ocupação humana contínua. São estruturas usadas para confinar substâncias, produtos ou instalações.

Em geral, os Espaços Confinados são locais que permanecem fechados por médios ou longos períodos de tempo, mas precisam ser acessados em determinado momento por profissionais encarregados de realizar um trabalho específico internamente como manutenção, inspeção, limpeza ou resgate.

Por todas essas propriedades, o local confinado expõe o trabalhador a riscos de acidentes e óbitos. “Com sua geometria enclausurada, as entradas e saídas são de difícil acesso, e pode acumular riscos atmosféricos e outros riscos graves, se tornando perigoso também pelo fato de não ser projetado para ocupação humana contínua”, define o engenheiro de segurança do trabalho, Francisco Kulcsar Neto, pesquisador da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro).

Embora não haja estatísticas precisas no Brasil – o Ministério do Trabalho não registra uma classificação de acidentes em Espaços Confinados -, o trabalhador gaúcho tem argumentos para justificar o “homicídio” em série de galinhas.

De acordo com especialistas em segurança do trabalho, em número de óbitos, estes locais só são superados pelos acidentes com queda em altura na construção civil, sem considerar a incidência da sub-notificação, o que poderia aumentar o índice.

As estatísticas oficiais  distribuem os acidentes ou as mortes ocorridas nos Espaços Confinados em outras categorias: incêndios, explosões, situações envolvendo produtos perigosos, são alguns exemplos. “Mas a incidência nos locais confinados é grande. Até diria que absurdamente grande”, confirma o presidente da Survival Systems do Brasil, Carlos Barbouth – primeira empresa a introduzir o ensino teórico-prático da prevenção de acidentes nesta especialidade no Brasil em 1999, e treinou milhares de trabalhadores dos mais diversos setores.

Além de freqüentes, os acidentes em Espaços Confinados geralmente são fatais. Para alguns especialistas, não oficialmente, até 90% dos casos registram mortes. Não existem números exatos, mas estimativas realizadas pelas autoridades de segurança do trabalho no Brasil indicam que mais de 50% dos acidentes ocorridos no País se concentram na área rural. “No Rio Grande do Sul, onde é realizado o experimento com a galinha, quase 100% dos acidentes acontecem na área rural”, garante o engenheiro Sérgio Augusto Letizia Garcia, auditor fiscal da Delegacia Regional do Trabalho do RS.

Divulgação / Fundacentro
Francisco Kulcsar Neto: “O local é perigoso também pelo fato de não ser projetado para ocupação humana contínua”.

Os acidentes são causados – sobretudo na área rural, onde há limitação ao acesso à informação – pela falta de inúmeros fatores: reconhecimento dos Espaços Confinados existentes; permissões de entrada e trabalho; testes de atmosfera; bloqueio de equipamentos mecânicos, energia elétrica, vapor, material granulado e fluídos; procedimentos e equipamentos de proteção individual; resgate e primeiros socorros.

“O encadeamento de fatos que geram os acidentes começa pela falta absoluta de informação, conhecimento e conscientização, medidas de engenharia, medidas administrativas, e medidas pessoais, como exames médicos, além de procedimentos, equipamento e equipe de resgate”, completa Kulcsar, da Fundacentro.

Divulgação / Survival Systems do Brasil
Treinamento: falta de informação é uma das maiores causas de acidentes
Combate às causas dos acidentes

Além de preservar a vida de milhares de galinhas no Brasil, a Norma Regulamentadora 33 (NR-33), em vigor desde o dia 28 de dezembro de 2006, deve salvar muitos trabalhadores ao determinar medidas que abrangem todas as causas responsáveis por acidentes em Espaços Confinados. A nova lei apresenta compreensão geral para todos os segmentos onde existem estes locais, o que inclui o setor rural.

A NR-33 complementa a normativa existente no Brasil (NR 18.20 e NBR 14787 da ABNT e a NR-31). Durante muito tempo,  a única Norma Regulamentadora que mencionava o assunto era a NR-18, sobre as “Condições e Meio Ambiente de Trabalho na Indústria da Construção Civil”. A lei determina a adoção de medidas especiais de proteção nas atividades que exponham os trabalhadores a riscos de asfixia, explosão, intoxicação e doenças do trabalho – muitos destes procedimentos constituem atualmente o mesmo núcleo da NR-33.

O tema voltou a ser abordado na NR-31, mas prevaleceu a interpretação de que todas as normativas eram válidas somente para a indústria da construção civil e para as atividades e serviços mencionadas na lei, abrangência restrita à área rural. “A NR-31 abordava o assunto de uma forma muito superficial. As medidas ali propostas não eram suficientes para evitar acidentes em Espaços Confinados. E a lei não abrangia a área rural, apenas a zona urbana”, explica Sérgio Garcia.

Com o principal objetivo de eliminar o risco de acidentes fatais, disseminar informação e exigir procedimentos de segurança, a NR-33 pretende estabelecer os requisitos mínimos para identificação de Espaços Confinados e o reconhecimento, avaliação, monitoramento e controle dos riscos existentes.

Segundo Garcia, que foi coordenador do GTT (Grupo de Trabalho Tripartite) da NR-33, todas as medidas da Norma visam diminuir o número de acidentes e mortes nos Espaços Confinados. “A Norma está muito abrangente, os objetivos são bastante completos. A NR-33 procurou abranger o maior número de riscos possíveis e métodos de controle. Para a área rural, as medidas são muito complexas”.

O Brasil se espelha no exemplo norte-americano para projetar queda nos índices de acidentes em Espaços Confinados. Com a publicação de uma Norma equivalente nos Estados Unidos, em 1997, houve redução significativa de mortes – estima-se que o país diminuiu cerca de 50 óbitos por ano. “Com certeza haverá redução de óbitos no Brasil. A NR-33 trata de procedimentos operacionais que as empresas e profissionais devem seguir, evitando assim acidentes fatais”, afirma a engenheira Paula Scardino, membro do GTT da NR-33 e coordenadora Nacional da NBR 14787 da ABNT.

Divulgação / Survival Systems Canadá
Simulado com socorristas devidamente equipados: resgatistas geralmente não possuem nenhuma aptidão física nem capacitação na área de salvamento
Falta informação

Mas as pessoas não estão morrendo apenas pelas causas freqüentes atribuídas aos acidentes em Espaços Confinados: falta de oxigênio, inalação de produtos tóxicos – ou ainda quedas e explosões. Os especialistas são unânimes em apontar um fator determinante: a falta de informação sobre os riscos.

A desinformação atinge empregadores e funcionários. “No Brasil, em linhas gerais, podemos afirmar que a grande maioria dos trabalhadores desconhece os riscos provenientes dos trabalhos envolvendo Espaços Confinados. Não resta dúvida de que a falta de informação, na maioria das vezes, é motivada pela ignorância dos próprios empregadores”, reconhece o engenheiro, Paulo Cesar de Lima, responsável pelo departamento de Segurança do trabalho da Usinas Itamarati.

Um outro caso ocorrido no Rio Grande do Sul ilustra o tamanho do desconhecimento sobre os riscos nos Espaços Confinados. No ano passado, o dono de um pequeno armazém de beneficiamento de grãos pediu para a própria filha, de 10 anos, entrar no local para retirar água. O líquido deveria ser colocado em um balde que ele puxaria através de uma corda. “Mas a menina se negou e o próprio dono, ao fazer o trabalho, acabou morrendo. Isso comprova que há desconhecimento do risco. Ninguém ia expor um filho se soubesse da possibilidade”, diz Sérgio Garcia.

As estatísticas sobre mortes de resgatistas também explicitam o panorama de total desconhecimento sobre o tema. Estima-se que por cada vítima fatal, dois socorristas (pseudo-resgatistas) morrem tentando salvá-la. “Quando o Espaço Confinado faz uma vítima, logo em seguida fará múltiplas vítimas que tentarão realizar resgates desastrados, agindo emocionalmente e não racionalmente”, explica Kulcsar.

Além de não terem conhecimento sobre os riscos, os socorristas geralmente não possuem nenhuma aptidão física e mental, formação, qualificação e capacitação na área de salvamento, resgate, primeiros socorros, Reanimação Cárdio Pulmonar (RCP). Por isso, a NR-33 estabelece que o empregador deve elaborar e implementar procedimentos de emergência e resgate adequados aos espaços confinados.

Poucas empresas e trabalhadores sabem reconhecer um Espaço Confinado e distinguí-lo dos demais locais de trabalho, processo que requer também informação específica. O local muitas vezes não é confinado, mas torna-se. A caixa d´água, por exemplo, enquanto está sendo utilizada na sua função tradicional é apenas um reservatório e distribuidor. Quando é preciso esvaziá-la e realizar manutenção, inspeção e limpeza com produtos químicos, ela se transforma em um Espaço Confinado.

Segundo Kulcsar, a falta de informação converte pequenos erros em catástrofes. “O desconhecimento gera um outro efeito: estes espaços tornam-se traiçoeiros, pois o trabalhador acha que não há risco algum em adentrar. Ações simples como a entrada para resgatar uma ferramenta que caiu ou foi esquecida no interior do espaço confinado pode se transformar numa tragédia”.

Divulgação / Survival Systems do Brasil
NR-33 também exigirá investimentos em diversos equipamentos: sistemas de içamento estão entre as demandas
Adaptação das Usinas

A transmissão de informações sobre os riscos é o procedimento eleito pelo setor sucroalcooleiro para iniciar a adaptação à NR-33. Há nas usinas de açúcar e álcool mais de 30 locais com características compatíveis aos Espaços Confinados. Nestes equipamentos são realizados serviços de manutenção, reparos, limpeza e inspeção.

A implantação da Norma está provocando alguns ajustes na rotina de trabalho das centenas de usinas brasileiras. “As unidades terão muito trabalho para se adaptarem. Acredito que o processo será lento”, admite o engenheiro Mário Márcio dos Santos, presidente do GSO (Grupo de Saúde Ocupacional da Agroindústria Sucroalcooleira).

Conforme Mário Márcio, de forma geral, orientações e procedimentos básicos já são fornecidos pelas usinas aos seus trabalhadores, principalmente na planta industrial. “Mas precisamos nos aprimorar ainda mais com a entrada da NR-33”, ressalva.

A complexidade das mudanças dependerá do grau de desenvolvimento em segurança, higiene e medicina do trabalho de cada usina. “Não classifico as mudanças como complexas. Mas em um primeiro momento serão trabalhosas”, resume Paula Scardino. “O maior desafio dos profissionais de segurança consiste em identificar os locais confinados de sua unidade, para que possam tomar as medidas de controle. Todos os trabalhadores envolvidos em trabalhos em Espaços Confinados também deverão ter ciência dos riscos e formas de controle, através de treinamentos”, completa.

O presidente da Survival Systems do Brasil, Carlos Barbouth, aconselha as usinas a adotarem o conceito do modelo conhecido como “Triângulo da Segurança”, formado por três elementos: equipamentos, treinamentos e procedimentos. “Faltando qualquer um deles, não há segurança”, define.

A Usina Itamarati, assim como grande parte das empresas sucroalcooleira, já teve problemas com acidentes em Espaços Confinados no passado, mas desenvolveu e implantou um procedimento específico e adquiriu equipamentos que permitem a realização dos trabalhos com segurança nestes locais.

Ainda assim, revela Paulo Cesar de Lima, a Itamarati precisará promover reformulações para se adequar à nova legislação. Para ele, a capacitação dos trabalhadores e o desenvolvimento de métodos seguros de trabalho são pontos chaves para redução de acidentes. “A NR-33 exigirá que as empresas tratem a questão de forma metódica, com grande foco na capacitação do trabalhador”.

Além de qualificação dos profissionais e sinalização dos Espaços Confinados, o cumprimento da NR-33 também exigirá investimentos em diversos equipamentos: sistemas de ventilação, aparelhos de içamento e resgaste do trabalhador máquinas para avaliação de contaminantes, detectores de gases a prova de explosão, e conjuntos de comunicação.

Reconheça um Espaço Confinado

Espaços Confinados são locais que apresentam as seguintes características básicas:
– entradas e saídas limitadas
– não projetados para a permanência humana e trabalhos contínuos
– ventilação desfavorável
– Podem conter produtos tóxicos ou inflamáveis
– Possuem uma atmosfera perigosa que possa causar morte, dano, doença aguda ou incapacidade física, do tipo:
• Deficiente de oxigênio
• Tóxica ou prejudicial à saúde
• Inflamável e/ou explosiva

Fonte: Fundacentro

Punições previstas

O não cumprimento das determinações da NR-33 está sujeito a punições rigorosas. A adoção das medidas necessárias para o cumprimento integral da Norma é obrigatória desde o dia da publicação da lei no Diário Oficial da União, ocorrida em 27/12/2006.

Em caso de ação fiscal dentro dos primeiros 90 dias da publicação da Norma, a empresa, se fiscalizada, receberá prazo para cumprir a notificação expedida pelo Auditor Fiscal do Trabalho, que deve obedecer ao critério da dupla visita para lavratura de autos de infração.

Caso a fiscalização seja realizada após o dia 27/03/2007, aplicação das sanções legais pode ser imediata, por meio de auto de infração. Em situação de grave e iminente risco ao trabalhador, a operação no Espaço Confinado deve ser instantaneamente paralisada após a lavratura do Termo de Interdição.

O Ministério do Trabalho divulgou a realização de fiscalizações rigorosas, mas os especialistas garantem que as inspeções, solitariamente, não serão suficientes para reduzir os acidentes em Espaços Confinados. “A existência de uma lei é importante, mas, se não for amplamente divulgada, conhecida e respeitada, de pouco serve, exceto na hora de apontar os culpados”, argumenta Barbouth.

No primeiro momento, portanto, um trabalho intenso de conscientização e informação pode ser mais benéfico do que autuações em série. “O trabalhador tem o direito de saber dos riscos que poderá enfrentar e as medidas de controle necessárias. A vida não tem uma segunda chance num Espaço Confinado”, conclui Kulcsar.
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NR-33 determina procedimentos para antecipação de acidentes
Para especialistas, TI ainda carece de governança e integração no setor
Apenas aplicação de sistemas não garante sucesso em TI
 

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